DO FUNDO DO BAÚ
Atores relembram histórias de bastidor e falam sobre a importância do ‘TV Pirata’
Lembrado até hoje pelo abobalhado Barbosa de “Fogo no rabo” — sátira da novela “Roda de fogo” e um dos quadros mais populares do “TV Pirata” —, Ney Latorraca, de boné, óculos escuros e texto de peça de teatro em punho, já aguardava a reportagem da Revista da TV, justificando ser “uma pessoa muito tensa”. O ator chegou meia hora antes do horário marcado ao encontro com parte do elenco do celebrado humorístico, que voltou ao ar no Canal Viva nas noites de sábado. Mas bastou botar o papo em dia com Pedro Paulo Rangel, Diogo Vilela, Débora Bloch, Louise Cardoso e Cristina Pereira para relaxar, sem se preocupar com o relógio. A ponto de imitar os amigos durante a longa conversa, regada a muita água e café na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio.
— Isso aqui parece reunião do Retiro dos Artistas — logo ironizou Latorraca, um frasista inspirado.
Contrariando a fama da classe, os companheiros de Latorraca foram pontuais. E apareceram em intervalos de minutos. Rangel chegou pouco depois de Louise e logo mostrou um álbum de fotos da época do “TV Pirata”, que circulou pela mesa, enquanto Vilela e Cristina tomavam seus lugares e começavam a lembrar histórias. Recém-chegada de férias na Bahia, Débora fez graça com o fato de ser a última a aparecer naquela luxuosa reunião.
— Cadê Regina (Casé), Luiz (Fernando Guimarães), Marco Nanini e Claudia Raia? — pergunta a atriz, em tom de brincadeira.
— Não vamos tocar nessa ferida! — responde Rangel, também de galhofa.
— Eles moram no Projac! Não estão mais entre nós — resume Latorraca, aproveitando a piada.
Os atores citados por Débora — todos da primeira formação do programa — também foram convidados para a entrevista. Apenas Guilherme Karan não foi encontrado. Os ausentes não puderam participar por conta de compromissos profissionais. Mas não faltou assunto. Afinal, eles se juntaram para falar de uma atração que revolucionou o humor televisivo no fim da década de 1980. Exibido pela Globo entre 1988 e 1992, o “TV Pirata” usava uma linguagem próxima à do americano “Saturday night live” para romper com a fórmula de esquetes e bordões dos programas nacionais do gênero.
— Foi um momento de ousadia dentro da TV. Aquele era um humor que brincava com a programação da própria casa, sem pedir nenhum tipo de desculpa. Ao mesmo tempo, era de uma sofisticação e de uma delicadeza... — diz Latorraca.
A atração também se valia da programação televisiva para criticar o cotidiano. E mesclava quadros fixos com outros esporádicos. Em “Casal telejornal”, a vida íntima da dupla Carlos Alberto (Luiz Fernando Guimarães) e Maria Helena (Regina Casé) se misturava às notícias absurdas lidas por eles na bancada da cozinha de um apartamento. Já no “TV Macho”, o apresentador Zeca Bordoada (Guilherme Karan) defendia a classe e quase sempre encerrava seu quadro com uma cena de pancadaria. Símbolo sexual na década de 80, Claudia Raia surgia quase irreconhecível na pele da lésbica Tonhão, em “As presidiárias”.
— Até de paquita me vestiram — conta Rangel, mostrando a foto em que aparece de peruca loura e bota branca.
— Não mudamos nada! — brinca Débora, de olho no álbum trazido pelo companheiro de elenco.
Vilela discorda da amiga:
— Ah, eu mudei sim. Era magérrimo, agora que estou vendo! Impressionante...
Parte dos atores confessa que ainda não conseguiu assistir à reprise do humorístico, no ar desde o dia 1º de janeiro, à meia-noite de sábado para domingo. Mas apesar de quase todos terem a sensação de que “não se lembram de quase nada”, as memórias surgem durante o papo, transformado numa nostalgia coletiva.
— Vieram me falar: “Eu te vi de maiô na TV”. Disse que não era eu, mas estavam falando dessa reprise do Canal Viva — conta Débora.
Louise Cardoso tem assistido à atração graças às fitas VHS nas quais gravava o programa, transformadas agora em DVD.
— Revendo o “TV Pirata” percebi como éramos loucos. A gente gravava muita coisa, até 2h da manhã. Cada quadro tinha um cenário enorme. Depois, a produção derrubava tudo e montava o próximo — lembra Louise.
Cristina e Vilela recordam que tinham dupla jornada na TV à época. Quando o humorístico estreou, eles gravavam os últimos capítulos de “Sassaricando”.
— Eu ia com a roupa e as unhas da personagem da novela. Uma Kombi nos transportava. Era um calor! A gente suava e comia frutas no caminho. Quando chegava, trocava o figurino para o do “TV Pirata”. A gente gravava e depois ainda voltava para fazer mais cenas de “Sassaricando” — frisa Cristina.
Os atores encaravam mil e um tipos no maior bom humor. Com direito a muitas trocas de figurino e caracterizações complicadas num mesmo dia.
— Lembro de uma cena em que o Diogo ia interpretar um negão. Ele foi todo pintado e, quando terminou, a produção chegou dizendo: “Mas o cenário do negão ainda não está pronto. Agora é a japonesa”. E lá foi ele tomar banho para virar uma gueixa — recorda Rangel.
De vez em quando, Louise também tinha que entrar debaixo do chuveiro para trocar de personagem:
— Fazia uma negona e tomava banho para tirar a maquiagem. O Ney subia numa escada para ver eu e Claudia Raia no banho. A gente nem ligava... Era o Ney!
Brincadeiras à parte, o atores afirmam que “o grande lance” do programa era ter um elenco formado por gente com experiência nos palcos.
— A equipe de roteiristas também merece destaque. Juntaram o pessoal do teatro alternativo como o Vicente (Pereira), a Patrycia Travassos, o Pedro Cardoso e o Felipe Pinheiro com escritores como o Veríssimo e o pessoal do jornalismo, do Casseta Popular e do Planeta Diário — enumera Débora.
O elenco destaca ainda que o programa não tinha, necessariamente, gente apenas relacionada ao humor.
— Ali ninguém queria ser humorista. No máximo, comediante. Mas a gente sempre teve a dimensão do programa, que estimulava a autocrítica. Embora contasse com nomes tarimbados e tenha se transformado em referência, o “TV Pirata” passou longe de ser uma unanimidade quando foi criado. A própria Globo, contam os atores, tinha um pé atrás com o projeto — explica Vilela.
— Foram Boni (vice-presidente de operações da emissora à época), Daniel Filho (diretor) e Guel Arraes que bancaram a ideia do programa — revela Latorraca.
Mesmo assim, o elenco era assombrado pelo medo de ver a atração sair do ar.
— Eu chegava para gravar e me diziam: “Amanhã não vai ter mais”. Virou um mito. A gente recebia muita carta de desagravo. Ninguém dizia que era ótimo. Só o povo nas ruas. O povo dizia! — reforça Vilela.
Louise interrompe o ator para contar um caso que a impressionou:
— Nunca vou esquecer de uma carta que recebemos! O cara nos chamava de ninho de serpentes lésbicas — ri a atriz.
Mais jovem do elenco, Débora afirma ter encontrado a sua turma ali:
— Foi a minha faculdade, onde tive prazer na TV. Com o programa, tornou-se possível ter um grupo naquele veículo. A gente gravava às segundas e terças, porque todos faziam teatro. E ficávamos juntos numa sala muito pequena. Brincávamos de mímica e de baralho. O Nanini ganhava sempre!
Eles dizem que foi Vilela quem brigou por um lanche mais robusto para o elenco.
— Achava um absurdo só termos uns iogurtes boiando no gelo — diz ele.
O grupo confessa que, depois do upgrade, degustar o bufê passou a ser “a” diversão dos intervalos das gravações. Louise, por exemplo, entrega que Luiz Fernando “comia o queijo inteiro”.
— O código para o lanche era “vamos molhar?”. Porque a gente molhava o pão no café com leite. Mas a Regina falava que não molhava, que era falta de educação — conta Louise.
Vilela diverte-se lembrando que a pose de Regina foi por água abaixo:
— Um dia pegamos a Regina em flagrante molhando também.
O clima entre eles era quase sempre ótimo, garantem. Nada de desavenças nos bastidores? Os atores são unânimes em afirmar que não rolava climão. Apenas “brigas estéticas”, para melhorar o trabalho. Tanto que, quase no final da conversa, Louise surge com uma sugestão para a próxima reunião da trupe:
— O “TV Pirata” ainda vai fazer tanto sucesso que, daqui a 30 anos, vocês vão marcar de novo esse encontro. Mas imagina como a gente vai chegar aqui? Todo mundo de cadeira de rodas.
Lembrado até hoje pelo abobalhado Barbosa de “Fogo no rabo” — sátira da novela “Roda de fogo” e um dos quadros mais populares do “TV Pirata” —, Ney Latorraca, de boné, óculos escuros e texto de peça de teatro em punho, já aguardava a reportagem da Revista da TV, justificando ser “uma pessoa muito tensa”. O ator chegou meia hora antes do horário marcado ao encontro com parte do elenco do celebrado humorístico, que voltou ao ar no Canal Viva nas noites de sábado. Mas bastou botar o papo em dia com Pedro Paulo Rangel, Diogo Vilela, Débora Bloch, Louise Cardoso e Cristina Pereira para relaxar, sem se preocupar com o relógio. A ponto de imitar os amigos durante a longa conversa, regada a muita água e café na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio.
— Isso aqui parece reunião do Retiro dos Artistas — logo ironizou Latorraca, um frasista inspirado.
Contrariando a fama da classe, os companheiros de Latorraca foram pontuais. E apareceram em intervalos de minutos. Rangel chegou pouco depois de Louise e logo mostrou um álbum de fotos da época do “TV Pirata”, que circulou pela mesa, enquanto Vilela e Cristina tomavam seus lugares e começavam a lembrar histórias. Recém-chegada de férias na Bahia, Débora fez graça com o fato de ser a última a aparecer naquela luxuosa reunião.
— Cadê Regina (Casé), Luiz (Fernando Guimarães), Marco Nanini e Claudia Raia? — pergunta a atriz, em tom de brincadeira.
— Não vamos tocar nessa ferida! — responde Rangel, também de galhofa.
— Eles moram no Projac! Não estão mais entre nós — resume Latorraca, aproveitando a piada.
Os atores citados por Débora — todos da primeira formação do programa — também foram convidados para a entrevista. Apenas Guilherme Karan não foi encontrado. Os ausentes não puderam participar por conta de compromissos profissionais. Mas não faltou assunto. Afinal, eles se juntaram para falar de uma atração que revolucionou o humor televisivo no fim da década de 1980. Exibido pela Globo entre 1988 e 1992, o “TV Pirata” usava uma linguagem próxima à do americano “Saturday night live” para romper com a fórmula de esquetes e bordões dos programas nacionais do gênero.
— Foi um momento de ousadia dentro da TV. Aquele era um humor que brincava com a programação da própria casa, sem pedir nenhum tipo de desculpa. Ao mesmo tempo, era de uma sofisticação e de uma delicadeza... — diz Latorraca.
A atração também se valia da programação televisiva para criticar o cotidiano. E mesclava quadros fixos com outros esporádicos. Em “Casal telejornal”, a vida íntima da dupla Carlos Alberto (Luiz Fernando Guimarães) e Maria Helena (Regina Casé) se misturava às notícias absurdas lidas por eles na bancada da cozinha de um apartamento. Já no “TV Macho”, o apresentador Zeca Bordoada (Guilherme Karan) defendia a classe e quase sempre encerrava seu quadro com uma cena de pancadaria. Símbolo sexual na década de 80, Claudia Raia surgia quase irreconhecível na pele da lésbica Tonhão, em “As presidiárias”.
— Até de paquita me vestiram — conta Rangel, mostrando a foto em que aparece de peruca loura e bota branca.
— Não mudamos nada! — brinca Débora, de olho no álbum trazido pelo companheiro de elenco.
Vilela discorda da amiga:
— Ah, eu mudei sim. Era magérrimo, agora que estou vendo! Impressionante...
Parte dos atores confessa que ainda não conseguiu assistir à reprise do humorístico, no ar desde o dia 1º de janeiro, à meia-noite de sábado para domingo. Mas apesar de quase todos terem a sensação de que “não se lembram de quase nada”, as memórias surgem durante o papo, transformado numa nostalgia coletiva.
— Vieram me falar: “Eu te vi de maiô na TV”. Disse que não era eu, mas estavam falando dessa reprise do Canal Viva — conta Débora.
Louise Cardoso tem assistido à atração graças às fitas VHS nas quais gravava o programa, transformadas agora em DVD.
— Revendo o “TV Pirata” percebi como éramos loucos. A gente gravava muita coisa, até 2h da manhã. Cada quadro tinha um cenário enorme. Depois, a produção derrubava tudo e montava o próximo — lembra Louise.
Cristina e Vilela recordam que tinham dupla jornada na TV à época. Quando o humorístico estreou, eles gravavam os últimos capítulos de “Sassaricando”.
— Eu ia com a roupa e as unhas da personagem da novela. Uma Kombi nos transportava. Era um calor! A gente suava e comia frutas no caminho. Quando chegava, trocava o figurino para o do “TV Pirata”. A gente gravava e depois ainda voltava para fazer mais cenas de “Sassaricando” — frisa Cristina.
Os atores encaravam mil e um tipos no maior bom humor. Com direito a muitas trocas de figurino e caracterizações complicadas num mesmo dia.
— Lembro de uma cena em que o Diogo ia interpretar um negão. Ele foi todo pintado e, quando terminou, a produção chegou dizendo: “Mas o cenário do negão ainda não está pronto. Agora é a japonesa”. E lá foi ele tomar banho para virar uma gueixa — recorda Rangel.
De vez em quando, Louise também tinha que entrar debaixo do chuveiro para trocar de personagem:
— Fazia uma negona e tomava banho para tirar a maquiagem. O Ney subia numa escada para ver eu e Claudia Raia no banho. A gente nem ligava... Era o Ney!
Brincadeiras à parte, o atores afirmam que “o grande lance” do programa era ter um elenco formado por gente com experiência nos palcos.
— A equipe de roteiristas também merece destaque. Juntaram o pessoal do teatro alternativo como o Vicente (Pereira), a Patrycia Travassos, o Pedro Cardoso e o Felipe Pinheiro com escritores como o Veríssimo e o pessoal do jornalismo, do Casseta Popular e do Planeta Diário — enumera Débora.
O elenco destaca ainda que o programa não tinha, necessariamente, gente apenas relacionada ao humor.
— Ali ninguém queria ser humorista. No máximo, comediante. Mas a gente sempre teve a dimensão do programa, que estimulava a autocrítica. Embora contasse com nomes tarimbados e tenha se transformado em referência, o “TV Pirata” passou longe de ser uma unanimidade quando foi criado. A própria Globo, contam os atores, tinha um pé atrás com o projeto — explica Vilela.
— Foram Boni (vice-presidente de operações da emissora à época), Daniel Filho (diretor) e Guel Arraes que bancaram a ideia do programa — revela Latorraca.
Mesmo assim, o elenco era assombrado pelo medo de ver a atração sair do ar.
— Eu chegava para gravar e me diziam: “Amanhã não vai ter mais”. Virou um mito. A gente recebia muita carta de desagravo. Ninguém dizia que era ótimo. Só o povo nas ruas. O povo dizia! — reforça Vilela.
Louise interrompe o ator para contar um caso que a impressionou:
— Nunca vou esquecer de uma carta que recebemos! O cara nos chamava de ninho de serpentes lésbicas — ri a atriz.
Mais jovem do elenco, Débora afirma ter encontrado a sua turma ali:
— Foi a minha faculdade, onde tive prazer na TV. Com o programa, tornou-se possível ter um grupo naquele veículo. A gente gravava às segundas e terças, porque todos faziam teatro. E ficávamos juntos numa sala muito pequena. Brincávamos de mímica e de baralho. O Nanini ganhava sempre!
Eles dizem que foi Vilela quem brigou por um lanche mais robusto para o elenco.
— Achava um absurdo só termos uns iogurtes boiando no gelo — diz ele.
O grupo confessa que, depois do upgrade, degustar o bufê passou a ser “a” diversão dos intervalos das gravações. Louise, por exemplo, entrega que Luiz Fernando “comia o queijo inteiro”.
— O código para o lanche era “vamos molhar?”. Porque a gente molhava o pão no café com leite. Mas a Regina falava que não molhava, que era falta de educação — conta Louise.
Vilela diverte-se lembrando que a pose de Regina foi por água abaixo:
— Um dia pegamos a Regina em flagrante molhando também.
O clima entre eles era quase sempre ótimo, garantem. Nada de desavenças nos bastidores? Os atores são unânimes em afirmar que não rolava climão. Apenas “brigas estéticas”, para melhorar o trabalho. Tanto que, quase no final da conversa, Louise surge com uma sugestão para a próxima reunião da trupe:
— O “TV Pirata” ainda vai fazer tanto sucesso que, daqui a 30 anos, vocês vão marcar de novo esse encontro. Mas imagina como a gente vai chegar aqui? Todo mundo de cadeira de rodas.
Fonte: O Globo
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